
O POVO traz mais mais uma reportagem da série especial Mães do crack
A vigília das horas
Ao ser tragado, o crack "voa" até o cérebro em 15 segundos. E o prazer que a droga incita é tão fugaz quanto escravizador. Com o tratamento da dependência química, é possível recuperar parte da vida que virou fumaça
06.08.2011| 01:30 - O POVO
Pediatra da UTI do Instituto Doutor José Frota (IJF) há 18 anos, a médica Maria Francielze Holanda Lavor cuida de casos impressionantes. Como o do “menino de 15 anos que já matou várias pessoas e foi atingido, pela polícia ou pelos próprios (comparsas) da droga”. O crack, mais devastador do que a cocaína, subtrai a existência. Por ser um instante, desconhece futuro. Algumas vezes, assina o atestado de óbito ou de “anos potenciais de vida perdidos”, testemunha a pediatra da UTI do IJF, referindo-se também às sequelas que determinam um coma vegetativo. “Um menino de 15 anos poderia trabalhar até os 60. Ele perdeu esse tempo. Para a sociedade, para a saúde pública, é um índice muito grave”, relaciona.
Aos adolescentes que se iniciam no crack aos 12, 14 anos, juntam-se mulheres em plena idade reprodutiva, ampliando as estatísticas da desgraça. Faltam dados precisos e oficiais sobre as mulheres usuárias da droga, mas o tempo calcula um aumento dessa população. “Há maior número de mulheres não só no uso, mas também no tráfico de drogas.
Elas são presas com os maridos ou amantes”, associa Rogério Melo, coordenador da Pastoral da Sobriedade – Regional Nordeste I e integrante do Conselho Estadual de Políticas contra Drogas. O caminho da volta (sugestão de intertítulo) As casas de recuperação são um termômetro desse problema de saúde pública. Pelo Instituto Volta a Vida (fundado em 1999), por exemplo, “já passaram muitas grávidas, inclusive, classe média”, indica o fundador, psicólogo Osmar Diógenes Parente.Já a unidade feminina do Centro de Recuperação Leão de Judá tem, comumente, 40 vagas preenchidas por mulheres a partir dos 14 anos. Hoje, a maioria das internas têm 25, 27 anos. “Mulheres formadas, donas de salão de beleza. Não tem essa de nível social”, perfila Sandramile Rodrigues, agente terapeuta do lugar. “É assustador porque a mulher se degrada e perde a noção de lar, de limpeza. Há entrega pela droga, submissa a maus tratos”, completa.
Os tratamentos tentam remediar a exclusão da vida e da sociedade. E mais, a exclusão de si próprio. “O crack é uma droga que desvincula pessoas que já têm um nível de ausência de vínculos pré-estabelecido. Não só vínculo econômico, mas emocional, afetivo, social. As pessoas já estão abandonadas e vão para a droga”, compreende o médico Alfredo Vieira de Holanda, do Centro de Assistência Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) da Barra do Ceará.O caminho da volta pode atravessar inúmeras internações e perdões. O primeiro passo é alcançar a ajuda. Para o Alfredo Holanda, é imprescindível a vontade do dependente. O psicólogo Osmar Parente contradiz: “A maioria não vem, espontaneamente, para o tratamento. Ele vai resistir, tentar ir embora, mas vai ser convencido várias vezes”.
Os dois especialistas concordam em aspectos fundamentais. Primeiro, na necessidade de um acompanhamento por profissionais de áreas afinadas. Segundo, na reaproximação da família e dos amigos. “Quem amar e quer curar não pode desistir”, receita Alfredo Holanda. Nessa vigília das horas, lembra Osmar Parente, “é um tratamento para o resto da vida”.No qual o tempo se torna, realmente, o melhor remédio. “Ensinamos até como fazer as reparações. Vá com calma”, sugere o psicólogo.
ENTENDA A NOTÍCIA
Instituições públicas, particulares ou religiosas são saídas para dependentes químicos. O tratamento pode se dar com internações ou consultas. Devem continuar fora dos muros das instituições com a reinserção social do ex-usuário e o restabelecimento dos vínculos familiares.
SERVIÇO
CENTRO DE ASSISTÊNCIA PSICOSSOCIAL ÁLCOOL E DROGAS da Barra do Ceará
CENTRO DE RECUPERAÇÃO LEÃO DE JUDÁ
Instituição evangélica, mantida pelo Ministério Leão de Judá (também através de doações, convênios com órgãos públicos e apoio de empresas), ramificada em casas no Eusébio (feminina), em Pacatuba e em Caucaia. A base do tratamento, feito por uma equipe multidisciplinar, são leituras bíblicas e práticas terapêuticas. O preço é negociável e a internação dura oito meses. Endereços das unidades e informações podem ser obtidas no site www.leaodejuda-ce.org.br.PASTORAL DA SOBRIEDADE
Organismo da CNBB, desdobra-se em grupos de autoajuda que acolhem dependentes químicos, alcoolistas e familiares. No Ceará, mantém grupos em 20 municípios. Na Capital, as reuniões semanais se multiplicam em 24 grupos, nas paróquias dos bairros. Atendimento gratuito.Mais informações: coordenação da Pastoral da Sobriedade (Centro Pastoral Maria Mãe da Igreja, à rua Rodrigues Jr., 300, Centro. Telefones: 3388.8707 / 8687.9628) ou no site w.sobriedadefortaleza. blogspot.com.
INSTITUTO VOLTA À VIDA – Rua Alzira Parente, 288, Lagoa Redonda. Dedica-se ao tratamento de alcoolismo e dependência química, apoiado pelo programa de 12 passos de Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos. O tratamento exige internação de quatro a seis meses. O valor também é negociável, e o instituto mantém alguns convênios. Mais informações: www.institurovoltaavida.com.brSAIBA MAIS
Além de informações sobre as usuárias de crack, faltam instituições para o tratamento de mulheres dependentes em Fortaleza. “Uma mulher dá trabalho por dez homens”, afirma o psicólogo Osmar Parente. A droga, continua, tanto capacita a mulher para a violência como acentua a sexualidade.
“A maioria das mulheres, como os homens, começa a usar droga cedo”, observa o psicólogo. “A menina de 15, 16 anos, já tem dois anos de uso de droga e tem droga de graça. Os homens querem se aproveitar, então, ela usa muito. Conhece todo tipo de gente e passa por mil situações de perigo. Com o tempo, começa a ser agredida e tem que aprender a se proteger.
Durante o tratamento, é inevitável a abstinência da droga e do sexo. “Fica numa fissura sexual e quer seduzir qualquer um, a qualquer hora, porque conviveu com a promiscuidade. E, aí, dá muito mais trabalho”, conclui o especialista.
LEIA AMANHÃ
No último dia da série, o relato de quem sobreviveu ao inferno. Duas ex-usuárias de crack, em tratamento, que retomam as rédeas da vida. Mães que pedem perdão aos filhos. Mulheres que fazem as pazes consigo mesmas.