Publicado em 12 de novembro de 2009 às 10:56 por Marta Peres, Professora da UFRJ (Artigo enviado pelo colaborador Alfredo Vasconcelos).
Grande artista, não faz falta a Caetano Veloso um diploma de nível superior. Seus recentes comentários injuriosos a respeito do presidente com a maior aprovação da História do Brasil são indiscutivelmente coerentes - com sua visão de mundo, com a visão da classe a que pertence, assim como dos meios de comunicação que as constroem incansavelmente, bloqueando qualquer ensaio de questionamento ao seu insistente pensamento único. Ao se referir a Lula como 'analfabeto', o termo está sendo utilizado de forma equivocada, pois 'analfabetismo' significa 'não saber ler nem escrever'.
Imagino que ele esteja se remetendo, de maneira exagerada, ao fato de Lula não ter diploma de graduação, coisa que o compositor tampouco possui. Esse tipo de exigência não é nem mesmo cogitada ante outros artistas geniais como Milton, Chico, Cora Coralina... Gilberto Gil, ex-ministro do governo Lula, graduou-se, mas não em música... 'Ah, mas eles são artistas...'. E não seria a Política uma arte? Um pouco de Platão e Aristóteles não faz mal a ninguém... Quanto à suposta 'cafonice' de nosso presidente, situado na revista americana Newsweek em 18° lugar entre as pessoas mais poderosas do mundo, Pierre Bourdieu (1930-2002) nos traz uma contribuição preciosa. De origem campesina, como Lula, o sociólogo francês criou conceitos que desmoronam o velho chavão do 'gosto não se discute'. Para Bourdieu, não só se deve discutir, como estudar, compreender, aquilo que se trata de, mais que uma questão de 'classe', uma questão de 'classe social'. Além do enorme abismo do ponto de vista propriamente econômico, os 'gostos diferenciadores', referentes ao 'estilo de vida', consistem na maior marca de violência simbólica e num fundamental instrumento de legitimação da dominação das classes dominadas pelas dominantes. Não somente é desigual a distribuição de renda numa sociedade dividida em classes, mas também o acesso à educação formal e informal - o hábito de freqüentar museus, espetáculos de teatro, música, dança - à sofisticação do vocabulário, às regras de etiqueta, à constituição da apresentação pessoal, dos 'modos' e atitudes corporais. Obviamente, alcançar maior poder aquisitivo não possibilita a aquisição desse 'capital cultural' adquirido ao longo de toda uma vida no convívio com 'outras pessoas elegantes', ou seja, com a 'elite'. Uma expressão precisa para designá-las, utilizada corriqueiramente na Zona Sul do Rio, é 'gente bonita' - como sinônimo de portadores de determinadas marcas de classe evidentes pelo vestuário, linguajar, cabelos, corpos, modos, atitudes.
Bourdieu demonstrou os aspectos, às vezes despercebidos, da 'construção social' do gosto, seja o gosto de Caetano, das elites, dos que gostariam de ser elite, pretendendo se distinguir da massa supostamente 'inculta'. Em outras palavras, as classes às quais pertencemos determinam, em grande parte, nossos critérios aparentemente inatos do que vem a ser elegância, numa relação de constante imitação, pelos 'cafonas', dos considerados detentores dos critérios de julgamento estético. Lula não segue a corrente dos imitadores: mantém-se fiel à cafonice que o identifica com suas origens populares. Ah, como isso incomoda... Embora seja assistido desde tempos imemoriais, lembrando que Norbert Elias estudou como a nobreza francesa era imitada por suas congêneres do resto da Europa no Ancien Régime, aqui, no Brasil, o fenômeno da distinção alcança as fronteiras do 'nojo', das reações fisiológicas desagradáveis, diante de tudo que possa remeter a atributos das classes populares, tudo que venha do 'povão'. Não é à toa que o REUNI - Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais que tem como objetivo "criar condições para a ampliação do acesso e permanência na educação superior, no nível da graduação, pelo melhor aproveitamento da estrutura física e de recursos humanos existentes nas Universidades Federais" - seja alvo de críticas ferrenhas, apesar de vir ao encontro de demandas por mais vagas já presentes nos protestos estudantis da França e do Brasil há quarenta anos, os quais, aqui, jamais sequer haviam sido objeto de atenção pelos governos. A demanda por cidadania e não por privilégios restritos é assunto que dá nojo, dá 'gastura', como se fala no interior do Brasil. Mas isso são outros quinhentos... Embora o acesso universal à educação deva ser uma meta, podemos questionar - como muitos eminentes acadêmicos questionam - que a universidade seja a única fonte de conhecimento legítimo, sob o risco de repetirmos, em outros moldes, o papel de detentora do saber exercido pela Igreja Católica Medieval.
O que seria de nós sem a contribuição inestimável de tantos notáveis que por ela não passaram? Pode-se argumentar, contudo, que o referido compositor não tem preconceito de classe ou contra a falta de diploma, pois pretende votar em Marina Silva que, como Caetano, não possui graduação, e que, como Lula, tem origem humilde. (O curioso é que, sendo a candidata à sucessão de Lula uma economista, dessa vez, a mesma é cobrada por não possuir mestrado e acusada de ter lutado contra a ditadura militar: sempre inventarão motivos contrários a políticas públicas que ferem ideais de distinção de classe). Ao contrário do que parece, os atributos de Marina caem como uma luva para nossa conservadora classe média leitora do Globo e da Veja e que jamais se assumirá preconceituosa: portar a nobre e indignada bandeira da causa verde faz disparar sua pontuação no quesito 'elegância'. Os que se preocupam ardentemente com a possibilidade de vida de seus netos e bisnetos são tocados em seu íntimo pelas questões ligadas à salvação das florestas. Só que, mais uma vez, como a História sempre ajuda a enxergar, o buraco - na camada de ozônio - é mais embaixo: a destruição do planeta é a consequência inexorável de um sistema perverso que nele vem se instalando há alguns séculos. Ao longo de suas notáveis transformações, atingiu um ponto em que passou a se dar conta de seu próprio potencial de destruição e de identificar na preocupação com a natureza uma boa - e quem sabe, lucrativa - causa. Do ponto de vista das chamadas 'Gerações' de Direitos Humanos, ao longo dos desdobramentos do capitalismo, a causa ecológica nasceu como a terceira filha. Enquanto a primeira, a segunda e a terceira gerações são identificadas com os ideais da Revolução Francesa - Liberdade, Igualdade e Fraternidade - a quarta, mais recente, relaciona-se a questões da Bioética e aos movimentos de segmentos minoritários ou discriminados da sociedade. A liberdade refere-se aos direitos civis e políticos, chamados de 'direitos negativos', pois limitam o poder exorbitante do Estado, que deve deixar o indivíduo viver e atuar politicamente. A igualdade consiste na luta pelos direitos sociais, culturais, econômicos, e demandam uma atuação 'positiva' do Estado no sentido de realizar ações que proporcionem condições de acesso de todos os indivíduos à educação, saúde, moradia, assistência social, dignidade no trabalho. Finalmente, a fraternidade esta ligada à ecologia, à preocupação com o destino da humanidade, irmanada por sua condição de habitante do planeta Terra. Como se situaria o Brasil nessa História? Não vivemos mais no tempo de Marx, das jornadas de trabalho de 18 horas que não poupavam mulheres e crianças caindo mortas de fome ao redor das grandes máquinas sujas das fábricas. Hoje, longos tentáculos buscam mão de obra barata como a planta se dirige à luz do sol e os dejetos - da poluição e os seres humanos excluídos da participação em suas benesses - são escondidos do campo de visão dos que têm 'bom gosto'.
Depois de destruir suas próprias florestas, os países ricos se preocupam e ditam regras da etiqueta politicamente correta aos pobres, abraçando a 'causa ecológica' com a mesma eloqüência que ontem defenderam que a 'mão invisível do mercado' traria a felicidade geral. Hoje, uma mão visível segura imponente a bandeira do orgulho verde. Porém, o corpo do qual faz parte constitui-se de fome, miséria, doença, condições abaixo de qualquer noção de dignidade da pessoa humana. A bandeira parece ser de um médico, mas o sujeito que a segura é um 'elegante' monstro. Chega a ser apelativo falar em salvar o planeta tirando de contexto uma causa que ninguém ousará contestar. Mas que tal pesquisar casos concretos de vínculos incontestáveis entre partidos verdes de diferentes países com os setores mais conservadores das respectivas sociedades? Visualizando a imagem do monstro, de braços dados com uma chiquérrima Brigitte Bardot salvando animais, faz todo sentido. A Bela e a Fera...
De modo algum defendo qualquer teleologia e que tenhamos que passar por fases que os outros já passaram. Nem que os sete anos de Governo Lula tenham se proposto a enfrentar bravamente, contra tudo e contra todos, o capitalismo que domina quase toda a superfície do planeta. Ninguém falou em Revolução, aliás, não era esse o combinado. Apenas assisto a um esforço hercúleo de instaurar políticas que ferem o coração desses mecanismos de violência, real e simbólica, que o julgamento do que é ou não cafona só vem a perpetuar, no sentido de minimizar o enorme fosso que separa os que têm e os que não têm acesso a conquistas históricas impreteríveis do Ocidente, independentemente de obediência a qualquer cronologia, identificadas com os direitos humanos: combate à fome à miséria, acesso universal à educação, à energia elétrica, diminuição da desigualdade ímpar que nos assola. Fraternidade, também quero, mas junto com a Liberdade, e principalmente, o que mais nos falta, Igualdade! Não igualdade no sentido anatômico, igualdade de condições, junto com a quarta geração. Não indignar-se com a miséria, agarrar-se ferrenhamente a seus privilégios, assim como espernear diante de sinais de mudança, faz parte do aprendizado de cegueira, inércia e arrogância por que passam nossas elites com seu gosto sofisticado. Mas ao contrário de um regime de concordância geral, o ideal de democracia é caracterizado justamente pela coexistência de opiniões diversas a respeito das políticas do governo. À insatisfação proveniente de certo campo ideológico correspondem, certamente, avanços jamais assistidos na História do Brasil. Com vínculos ideológicos resumidos na figura de ACM, nutridora de uma ordem social desigual desde 1500, existe uma indiscutivelmente sincera elite baiana à qual, desagradar, é sinal de que Lula está no caminho certo!
Pensamos muito antes de tornar público o relato feito a seguir. Apesar de se tratar de uma questão de foro íntimo e pessoal, não podemos deixar de compartilhar com todo o povo ético, honesto e trabalhador da nossa querida Boa Viagem, que ainda não perdeu a capacidade de se indignar com atitudes dessa natureza, mandar FLORES para desconhecidos.
O fato aconteceu com uma pessoa da nossa família, muito querida, que faleceu recentemente em Boa Viagem, digo em Canindé, pois em Boa Viagem não encontrou atendimento que o salvasse. Portador de um problema crônico de saúde, o mesmo realizava tratamento no Hospital de Canindé, pois o Hospital de Boa Viagem não dispõe do tratamento para pacientes portadores da patologia de que se tratava. Apesar disso sempre recorria ao Hospital de Boa Viagem nas emergências.
Segundo a família, numa dessas recorridas emergenciais procurou atendimento na Casa de Saúde Adília Maria, onde ouviu do médico que o atendeu, que procurassem atendimento em outro local, pois não sabia o que o paciente “tinha” e por isso não iria prescrever nenhum remédio sem saber o que acometia o paciente. Apesar de saber que o paciente era portador de uma doença crônica, o mesmo ficou internado tomando soro. Como o resultado não foi o esperado pela família que, vendo que o quadro se agravava, transferiu-o para o Hospital de Canindé, onde ao chegar foi atendido e poucas horas depois internado na UTI onde veio a falecer.
Até aqui, relatei o enredo normal da “via crucis” de um paciente que é atendido no Hospital de Boa Viagem, ou seja, atendimento péssimo e precário.
O fato que considero macabro aconteceu no velório. Quase que juntamente com a chegada do corpo na residência da nossa família, chegou também uma coroa de flores enviada pela Diretora do Hospital de Boa Viagem e pelo seu esposo e funcionário do Hospital, o mesmo médico que aparece numa foto na capa do carnê do IPTU.
A família resignada na dor, claro que aceitou, afinal não era aquele o momento adequado para discutir o que estava ou está por trás daquele gesto, ou seja, receber uma coroa de flores da diretora do Hospital que não salvou a vida do nosso ente querido.
Claro, que não estou querendo dizer que o atendimento ruim no Hospital de Boa Viagem causou a sua morte, mas, todos sabemos que o atendimento precoce em qualquer doença é fator determinante para o sucesso do tratamento e da cura.
Pelo que sabemos, a família não mantinha nenhum relacionamento próximo com a Senhora e com o esposo que mandaram a coroa de flores.
Finalmente quero pedir a esses “meros desconhecidos” que supostamente estão explorando a dor de famílias enlutadas com segundas intenções, para ter mais cautela no envio desses sentimentos, materializados através de coroas de flores, pois muitas vezes o velório é de um cidadão que não teve o atendimento que a família esperava e que o Hospital tinha por obrigação prestá-lo e não prestou.
Diante dessa atitude fica aqui a nossa indignação e revolta com essa atitude aviltante por parte da Diretora do Hospital e de seu esposo. Para tanto deixo aqui algumas reflexões para os leitores desse blog:
1. Será que os fins justificam os meios?
2. Será que esse envio de coroas de flores para desconhecidos tem alguma relação com a foto impressa no carnê do IPTU?
3. Será que existe um contrato com a floricultura para enviar uma coroa em nome do casal para todo e qualquer velório que aconteça em Boa Viagem?
4. Terá sido um pedido velado de desculpas pelo péssimo atendimento que ele recebeu em Boa Viagem?
5. Foi uma atitude ética por parte dos dois desconhecidos, explorar um momento de dor para tentar impressionar a família?
6. Será que eles sabiam para quem estavam mandando aquela coroa de flores? Ou será distribuição de coroas de flores em série, com intenção de promover alguém?
7. Qual a fonte do pagamento dessas coroas de flores?
Acredito que uma administração tão rodeada de professores da fé, poderia refletir melhor sobre a melhor maneira de atenuar a dor de famílias enlutadas pela perda de entes queridos.